Carreira e filhos

Flávia Bittencourt, presidente da Adidas Brasil

Entrevista UOL

Como foi criar quatro filhos enquanto crescia na carreira? Sentiu que estava abrindo mão de alguma coisa em algum momento?

Flávia Bittencourt – Com certeza, você sempre abre mão. Abre mão de uma reunião com professora, de uma consulta no médico, abre mão às vezes de estar no aniversário deles, ou no dia em que eles vão fazer uma apresentação na escola. São escolhas. Você tem sempre de abrir mão? Não..

A minha terceira filha nasceu, de um segundo casamento, quando eu já era diretora e já havia 400 pessoas reportando para mim. Uma posição de enorme visibilidade. Mas isso não me impediu de ter essa filha. Era um casamento novo, meu marido não tinha filhos, queríamos ter um filho juntos.

Engravidei e levei as coisas numa boa. Abria mão ora de um lado, ora do outro, você tem sempre de adaptar. O marido participando muito, porque ele tem de ajudar, não tem jeito, você tem de ter um companheiro que esteja a fim de fazer.

Depois que essa minha filha nasceu, houve uma explosão de gravidezes de mulheres na empresa. E várias chegaram para mim e disseram: só tive coragem de engravidar depois que vi você, como diretora, engravidar, o que mostra que eu não preciso escolher entre uma coisa e outra, que dá para fazer as duas coisas e que a minha carreira não vai parar aqui porque tomei a decisão de ter um filho.

Acho isso superbacana. Quando você é diretora, você tem essa visibilidade dentro da empresa e pode influenciar a vida de outras mulheres.

Pequenas escolhas como essas, você faz o tempo todo, está sempre negociando, não há jeito. Está negociando no trabalho, em casa, com o seu marido, com os seus filhos, mas dá para fazer tudo.

O que você tem de colocar na balança é: tudo tem um custo, e esse custo é para a mulher, como também é para o homem. Muitas vezes o meu marido também tem de abrir mão de uma série de coisas, de reuniões ou de coisas que ele está fazendo, para me ajudar com as crianças.

O quanto você quer aquilo? O quanto aquilo é importante para você, seja a sua família, os seus filhos, o tempo com o seu marido, o trabalho?

E não é só isso que você tem de encaixar quando você é mulher. Tem de encaixar academia, tem de fazer um esporte, eu tenho de fazer o cabelo, a unha, tenho de ter um tempo para mim, para ler um livro, para assistir a televisão.

Você, de certa forma, tem esse privilégio de poder escolher, talvez nem todas as mulheres possam. Como vê o caminho a trilhar para que todas tenham oportunidades de escolha?

Quando comecei, minha primeira filha foi no meu primeiro ano de trabalho, eu havia acabado de me formar. E não pude ir para o mercado de trabalho porque estava grávida. E durante muito tempo eu não tinha dinheiro para ter uma babá, para colocar no berçário, na escolinha… Já passei por momentos complicados também.

A primeira coisa que eu digo é: você tem de saber o que você quer e tem de ter muita resiliência. Vai haver dias bons e ruins, dias difíceis, por isso precisa ter muito claro o que você quer e por que você quer, o que a motiva.

A segunda coisa é um companheiro que ajude e dê suporte. Porque, se ele é o primeiro a reclamar, fica difícil. Você tem de dividir os seus sonhos com o seu companheiro para saber que ele vai ajudar você nesse caminho.

A terceira coisa é na sua empresa. Você tem de ser muito honesta.

Quando era muito jovem ainda, falei com o meu chefe: olha, tenho de sair daqui às seis da tarde, haja o que houver, porque tenho de buscar minha filha na escola, não há solução, não há quem busque, eu moro em São Paulo, não tenho parente aqui, a escolinha fecha.

E levantava no meio da reunião, seis horas da tarde, e ia embora. Nunca fui mandada embora por causa disso, porque sempre fui muito honesta com o meu chefe sobre qual era a minha limitação, e eu chegava em casa muitas vezes e ia trabalhar depois do horário para terminar o que tinha de fazer.

Aconteceu uma cena muito no início da minha carreira que eu também gosto de contar. Estava no carro com o presidente da minha empresa. Estávamos indo para um encontro com a imprensa sobre um projeto que estávamos lançando.

Eu era responsável pelo marketing, então um encontro com a imprensa era uma função minha. E estava no carro com ele, o celular tocou e era da escola do meu filho dizendo: ‘o Lucas bateu a cabeça aqui, abriu um buraco na testa, e a gente sugere que você o leve agora para o pronto-socorro’. Você faz o quê? ‘Para o carro, eu vou descer’.

O presidente olhou para mim com os olhos arregalados: ‘você não vai ao evento com a imprensa?’ ‘Não, vou buscar o meu filho porque ele abriu a cabeça e vou levá-lo ao hospital’. E realmente saí dali, peguei um táxi, fui para a escola do meu filho, fui para o hospital, e o evento ocorreu sem eu estar presente. Nunca houve nenhum problema por causa disso, porque, de novo, eu fui muito transparente. E ele entendeu claramente aquela situação.

É muito importante saber que empresa é essa em que você está? Que chefe é esse que você tem? Ele entende o outro lado? Ele entende as suas necessidades? E quando você está presente, você está realmente presente, está realmente entregando o melhor? Sempre existem os dois lados.

Sempre isso que eu tentei fazer na minha carreira e acho que tive muita sorte de ter pessoas bacanas ao meu lado, que sempre entenderam quando tinha de optar entre uma coisa e outra.

No início da carreira, você tinha em mente que queria chegar ao topo da hierarquia? Como foi a construção da sua carreira, principalmente sendo mulher, quais entraves enfrentou?.

Nunca pensei: ‘quero ser presidente de uma empresa’. Queria fazer parte das decisões estratégicas de uma empresa, queria ajudar a empresa a definir os rumos, os caminhos. Essa sempre foi uma parte, desde o início da minha carreira, que me instigou. Era isso o que eu sabia.

E aos poucos você vai indo e sempre assim: ‘puxa, mas eu queria fazer ainda mais, queria ser mais dona dessas decisões’. E aí você acaba chegando onde eu cheguei. O que me moveu não foi o cargo – ‘quero ser presidente’ –, nunca foi o dinheiro – ‘quero ter esse salário ou esse bônus’ –, sempre foi ‘o que eu posso fazer a mais’.

Fonte UOL – Participaram desta edição: Claudia Andrade (entrevista e edição); Armando Pereira Filho (edição); Simon Plestenjak (fotos); Felipe Druda (imagens e edição de imagens); René Cardillo (direção de arte); Micaele Martins (infografia).

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